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Todo mundo é pecador quando o prazer é a resistência

O novo filme de Ryan Coogler não é sobre monstros. É sobre como o cinema ainda não sabe lidar com a liberdade negra.

'Pecadores' é estrelado por Michael B. Jordan e o novo filme de Ryan Coogler, de 'Creed' e 'Pantera Negra' — Foto: Divulgação G1
'Pecadores' é estrelado por Michael B. Jordan e o novo filme de Ryan Coogler, de 'Creed' e 'Pantera Negra' — Foto: Divulgação G1

"Pecadores" é um daqueles filmes que deixa nossa mente inquieta e reflexiva, porque quando nos sentamos na cadeira daquela sala escura, não sabemos o que esperar, não sabemos que história vamos assistir e como ela vai nos fazer sentir. Mas "Pecadores" não deixa apenas aquela pulga atrás da orelha – ele deixa aquele sentimento de "onde nós, negros, pertencemos?". 


Ryan Coogler trabalha isso muito bem no filme, trazendo pontos como maioridade, vampiros, sangue e ação para essa história. Isso não só faz dele o maior sucesso do filme, mas traz em cada cena a luta, a ancestralidade e, acima de tudo, a música, para não só entendermos a luta negra, mas sabermos como construir raízes em um lugar em ruínas. Todos nós somos pecadores – ser pecador é abraçar o prazer, seus instintos, seus desejos para garantir seu espaço e, acima de tudo, poder para aquilo pelo que tanto lutou.


Ao som rouco e arrebatador do blues, Pecadores, nos conduz por uma travessia íntima, corporal e ancestral. Não é exagero dizer que, aqui, Coogler realiza sua obra mais livre — e também mais enraizada. Após o sucesso de Pantera Negra, que já flertava com as dimensões da ancestralidade e da corporeidade negra, o diretor mergulha ainda mais fundo em um cinema que pulsa desejo, identidade e pertencimento.


Em "Pecadores", o filme vive e respira blues, um estilo musical onde o sentimento vem antes da técnica em suas expressões de sofrimento, dor e exploração que começaram nas plantações do sul dos EUA, mas também de identidade, resistência e escapismo. Coogler não utiliza o blues apenas como trilha sonora, mas como elemento narrativo central que conecta passado e presente, ancestralidade e contemporaneidade.


Há uma ideia recorrente na obra sobre como músicos são condutores espirituais para diferentes planos de existência e comunhão com seus ancestrais, com um trabalho visual, cenográfico e musical que encapsulam com esmero essas conexões folclóricas e históricas que na obra remontam à contextos africanos e afro-americanos. O diretor entende que a música negra não é apenas entretenimento, mas um ritual de preservação cultural, uma forma de resistência que atravessa gerações.


A sensualidade do filme não vem apenas de corpos em movimento, mas da própria música que pulsa nas veias dos personagens. O senso de comunhão e de camaradagem que Coogler cria em diversos núcleos é arrebatador, não apenas pelo subtexto rico, mas pelas sensações de sensualidade, malícia, desejo e pura diversão de um grupo de pessoas encontrando uma válvula de escape das periferias. É uma sexualidade que não se dissocia da luta, que encontra no prazer uma forma de afirmação e resistência.


A escolha do vampiro como antagonista não é aleatória. A representação visual de Remmick é muito clara em sua invasão e ruptura cultural com esse meio, vindo não apenas para matar, mas para roubar. O vampiro irlandês que canta folk representa a apropriação cultural histórica que o blues sofreu, quando as ideias do vilão se aproximam de metáforas sobre apropriação cultural e destruição da arte negra.


Coogler constrói uma alegoria poderosa sobre como a cultura negra foi historicamente sugada, vampirizada por estruturas de poder que se alimentaram de suas criações enquanto negavam aos criadores originais o reconhecimento e os benefícios econômicos. O vampiro não é apenas uma criatura sobrenatural – é a materialização do sistema que drena a essência cultural negra.


Ambientado em 1932, no Mississippi, "Pecadores" conta a história dos irmãos gêmeos Elias "Stack" e Elijah "Smoke" Moore, interpretados por Michael B. Jordan. Dois criminosos perigosos retornam à sua cidade natal com o objetivo de recomeçar suas vidas com o dinheiro que ganharam em Chicago. O plano da dupla é claro: abrir um clube de blues com foco nos moradores negros locais, recrutando seu jovem primo Sammie (Miles Caton) e o veterano Delta Slim (Delroy Lindo) como as principais atrações da casa de shows.


No entanto, logo no dia da inauguração, o sobrenatural aparece para assombrar os planos dos protagonistas. O vampiro Remmick (Jack O'Connell), uma criatura irlandesa que canta folk, surge não apenas para matar, mas para roubar – tanto vidas quanto a essência cultural daquela comunidade. O que começa como um sonho de prosperidade e expressão artística se transforma em um pesadelo de sobrevivência, onde os irmãos precisam enfrentar não apenas criaturas sobrenaturais, mas também os próprios demônios internos e as escolhas moralmente ambíguas que a sobrevivência exige.


Elias "Stack" e Elijah "Smoke" Moore funcionam como duas faces da mesma moeda ancestral. Stack representa a assimilação pragmática – aquele que está disposto a fazer concessões ao sistema para garantir uma sobrevivência mais confortável. Sua paixão pela personagem Mary (Hailee Steinfeld), que "se passa" por parte daquele meio simboliza a sedução do branqueamento, a tentação de abandonar as raízes em troca de aceitação. Smoke, por sua vez, encarna a resistência pura, o guardião das tradições que prefere a morte à traição de seus valores ancestrais. A genialidade de Michael B. Jordan está em criar maneirismos sutis que diferenciam os irmãos, tornando visível essa dualidade interna que habita muitos corpos negros: conformar-se ou resistir?


Sammie (Miles Caton) representa a juventude negra em conflito, dilacerada entre a doutrinação cristã conservadora e o chamado pulsante da música que corre em suas veias. Seu arco narrativo espelha gerações de jovens negros que precisaram escolher entre a segurança da respeitabilidade religiosa e a autenticidade de sua expressão cultural. Sammie é o futuro em disputa – será ele moldado pela repressão ou pela libertação através da arte?


Delta Slim (Delroy Lindo) emerge como o griot moderno, o veterano que carrega a sabedoria ancestral no fundo de sua garrafa de álcool. Ele representa a memória viva da comunidade, aquele que "enxerga a verdade" porque já viveu os ciclos de esperança e desilusão. Sua presença no clube não é apenas artística, mas espiritual – ele é o elo entre as gerações, o guardião das histórias que não podem ser esquecidas.


Remmick (Jack O'Connell), o vampiro irlandês, funciona como um espelho distorcido da própria comunidade negra – alguém cuja cultura e ancestralidade também foram roubadas pelos britânicos. Coogler constrói um antagonista complexo que não busca apenas drenar sangue, mas sugar o poder de se conectar com o passado e o futuro de algo que lhe foi roubado, numa tentativa desesperada de reconectar-se com suas próprias raízes perdidas. Ele representa tanto o opressor quanto o oprimido, criando uma tensão moral fascinante: sua busca por identidade cultural espelha a dos protagonistas, mas seus métodos vampíricos simbolizam como a dor histórica pode corromper e transformar vítimas em algozes. Sua escolha de cantar folk irlandês em contraposição ao blues não é apenas invasão cultural – é o lamento de alguém que, como os personagens negros, perdeu a conexão orgânica com suas tradições ancestrais.


A dinâmica entre esses personagens cria uma constelação de escolhas morais onde cada decisão ecoa questões mais amplas sobre identidade, sobrevivência e integridade cultural. O clube de blues funciona como microcosmo da América negra – um espaço de resistência que constantemente enfrenta ameaças externas e tensões internas.


O filme questiona os caminhos disponíveis para a população negra vencer a opressão: arte ou crime; sendo taxados pelo meio que cresceram, não tão diferente do próprio blues que era categorizado como música do capeta antes de se popularizar com uma certa higienização country. A criminalização da cultura negra e sua posterior apropriação são processos que "Pecadores" expõe com maestria.


Ryan se encarrega de trazer em cada cena uma ironia amarga: todos nós somos pecadores – não no sentido cristão tradicional, mas no sentido de que a sobrevivência em um sistema opressor muitas vezes exige escolhas moralmente ambíguas. Ser pecador, no contexto do filme, é abraçar o prazer, os instintos, os desejos para garantir seu espaço e, acima de tudo, poder para aquilo pelo que tanto se lutou.


O filme é uma ode à resistência negra, à música como instrumento de conexão com os ancestrais e à força de uma comunidade que, mesmo diante do terror (real e fantástico), insiste em sonhar. A ancestralidade não é apenas um conceito abstrato, mas uma força viva que se manifesta através da música, dos rituais, das conexões espirituais que transcendem a materialidade.


O longa combina elementos de terror, crítica social e música afro-americana, criando uma experiência cinematográfica única. Coogler consegue o que poucos diretores alcançam: criar um filme de gênero que é simultaneamente entretenimento e manifesto político, obra de arte e produto comercial.


"Pecadores" funciona em múltiplas camadas: como filme de terror, como drama social, como celebração da cultura negra, como reflexão sobre apropriação cultural. A trilha sonora é um show à parte: não se limita apenas a manter o ritmo e sentido das cenas, mas se mostra fundamental para a construção tanto temática quanto estética do filme. Ryan Coogler entrega em "Pecadores" sua obra mais madura e complexa. O filme não apenas entretém, mas provoca, incomoda, faz pensar. É um trabalho que exige revisitações, que revela novas camadas a cada assistida. É uma obra que merece revisitações para melhor absorção dessas perspectivas e representações, para além das próprias sensações que o filme causa, ficando mais e mais denso e incômodo à medida que os vampiros começam a tomar conta do ambiente.


Quando o pesadelo acaba, a resistência cultural e social parece ter uma vitória agridoce, porém sensível no sacrifício, enquanto a imortalidade artística jaz na condenação da alma. O filme nos lembra que a arte negra é imortal, mas que essa imortalidade tem um preço – muitas vezes pago com sangue, suor e lágrimas.


"Pecadores" é mais que um filme sobre vampiros. É um filme sobre como se manter humano quando o mundo tenta sugar sua humanidade. É sobre encontrar beleza e prazer mesmo no meio do horror. É sobre criar raízes em solo hostil e fazer florescer arte onde só deveria haver dor.


Em tempos de apropriação cultural desenfreada e apagamento sistemático das contribuições negras para a cultura mundial, "Pecadores" surge como um grito de resistência. Um lembrete de que a alma negra não pode ser vampirizada – ela renasce, se reinventa, encontra novos caminhos para expressar sua humanidade integral.


Ao final, quando os créditos sobem, fica a sensação de tirar o fôlego, de respirar fundo e ter a sensação “eu vi um filmaço”, e não só isso, percebemos que Coogler nos entrega não apenas um filme de ação com vampiros e sangue, mas um espelho no qual a diáspora negra pode se reconhecer em toda sua complexidade: bela e assombrada, sensual e espiritual, ancestral e contemporânea. "Pecadores" é cinema com alma, coragem e identidade – exatamente o que o mundo precisa ver e ouvir.



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